sábado, 30 de janeiro de 2010

Desumanidades

Numa entrevista que merece ser lida publicada na secção P2 do Público de hoje Christophe Dejours refere a dado passo que num estágio de formação em França "no início, cada um dos 15 participantes, todos eles quadros superiores, recebeu um gatinho. O estágio durou uma semana e, durante essa semana, cada participante tinha de tomar conta do seu gatinho. Como é óbvio, as pessoias afeiçoaram-se ao seu gato, cada um falava do seu gato durante as reuniões, etc, etc. E, no fim do estágio, o director do estágio deu a todos a ordem... de matar o seu gato".  Confesso que neste ponto ansiei que a história ainda tivesse um final "feliz" que, no caso, passaria pela recusa dos "formandos" em cumprir a ordem. Mas infelizmente não foi o que sucedeu: apenas um dos participantes, uma mulher (que teve uma descompensação aguda), se recusou a cumprir a "ordem". Os outros 14 cumpriram a ordem, mataram os gatos e (embora a entrevista não o diga) serão provavelmente quadros bem sucedidos.

Sinceramente não sei se me choca mais o facto de alguém poder ter imaginado esta técnica de "formação" se o facto de 93% dos intervenientes ter aceitado cumprir a ordem. A meio desta parte da entrevista, a entrevistadora aponta estamos pois perante um cenário totalmente nazi e Dejours responde "Só que aqui ninguém está a pontar uma espingarda à cabeça de ninguém para o obrigar a matar o gato".~

Lembrei-me que (como quem já leu Arendt sabe) a maioria dos nazis eram chefes de família, funcionários que se "limitavam a cumprir ordens"... e recordei em particular uma passagem do livro "O Leitor" de Bernhard Schlink:
"- Ah o senhor quer entender o que é que faz com que os homens possam cometer coisas tão medonhas.
(...)
- Tem razão, não havia guerra nem nenhum motivo para o ódio. Mas o carrasco também não odeia aquele que vai executar e, contudo, executa-o. Porque lho ordenaram? Pensa que ele o faz porque lhe foi ordenado ? (...) Não, não estou a falar de ordens e da obediência. O carrasco não obedece a nennhuma ordem. Faz o seu trabalho e não odeia os que executa, não se vinga deles, não os mata porque estão no seu caminho ou porque o ameaçam ou o atacam. São-lhe totalmente indiferentes, tanto os pode matar como não matar."
Claro que os motivos dos nazis eram diferenciados e entre eles havia pessoas vingativas e desmesuradamente cruéis... mas a mim custa-me particularmente esta indiferença fria e desumana que esta "formação" pretendia "cultivar" naqueles quadros "superiores".

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