"(...) por esta altura, enchem-se os jornais de “notícias” com as declarações de rendimentos dos novos governantes, reproduzindo com alarde, até à canseira, o que cada um, nome por nome, tem nas contas, nas aplicações, propriedades, tudo num exercício de puro voyeurismo com que já nos vamos conformando. Mas, na verdade, não se trata de um inocente exercício de espreitadela pelas vidas alheias, o que não mereceria mais do que um gesto de impaciência pela futilidade. Trata-se, em bom rigor, do uso abusivo de uma informação que tem que ser prestada para um fim de interesse público de transparência, um fim de que tantos se reclamam em altos gritos mas do qual, afinal, não percebem absolutamente nada. Essa transparência, obtida à custa da renúncia à reserva da sua vida privada por parte dos que se dispõem a servir a causa pública, visa permitir que se confirme, ou não, que, no decurso dos mandatos, esses titulares não enriqueceram de forma desproporcionada ou inexplicável. Só isso, e nada mais, é que devia ser notícia, caso houvesse diferença digna de nota nesse contexto, tudo o mais é pura devassa que só distorce a boa intenção da lei. A devassa expõe, de uma forma leviana e gratuita, a vida privada dos que se dispõem a assumir cargos públicos e em nada contribui para a confiança dos cidadãos, uma vez que as notícias se esgotam no copy paste da declaração inicial, no anúncio aos sete ventos que fulano de tal, ministro, é rico ou é pobre, e que o outro ao lado é proprietário ou tem lá em casa um carro xpto, tornando a palavra transparência numa armadilha sem sentido. Nunca vi nenhum jornal fazer, no fim dos mandatos, o exercício contrário, que era demonstrar que a maior parte dos governantes não enriqueceram durante o exercício dos cargos, que é para isso que a lei existe, só assim tem sentido e só deste modo é que os que reclamam transparência a podem, honestamente, invocar, para obter informações que, de outro modo, não teriam o direito de exigir."
(Post publicado no Quarta República)
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