sábado, 20 de fevereiro de 2010

O caso das escutas / Face Oculta

O verdadeiro "circo" político e mediático que rodeia o caso "escutas" / Face Oculta tornou toda esta situação num verdadeiro caos em que sinceramente muitas das vezes já nem sequer consigo perceber do que é que se está a falar. Em boa parte esta confusão resulta de em todo este processo se misturarem vários casos, que se de algum modo se entrelaçam, são distintos.

Em primeiro lugar, temos o caso "Face Oculta original", digamos assim, que basicamente diz respeito a esquemas de corrupção e tráfico de influências relacionados com negócios de sucata (no sentido literal) com empresas participadas pelo Estado (designadamente a REN, a REFER e a EDP) em que alegadamente um dos "interlocutores" seria o administrador do BCP Armando Vara.

Em segundo lugar, temos o caso "PT/TVI" que respeita a um alegado envolvimento do primeiro-ministro na compra da posição da Prisa na Media Capital visando controlar a linha editorial da TVI ou, pelo menos, conduzir ao cancelamento do "Jornal de Sexta" apresentado por Manuela Moura Guedes.

E, em terceiro lugar, temos a situação "Taguspark/Figo" que respeita a uma eventual ligação entre contratos celebrados entre esta empresa e o apoio do ex-jogador e capitão da selecção portuguesa a Sócrates durante a campanha eleitoral para as eleições legislativas de Setembro de 2009.

Paralelamente a estes casos temos, ainda, vários episódios de alegadas "pressões" do Governo em órgãos de comunicação social e as intermináveis polémicas e discussões em torno das violações do segredo de justiça e do direito à intimidade e violação da vida privada.

De notar que embora todos estes casos envolvam directamente pessoas próximas do primeiro-ministro, nada do que foi divulgado até agora aponta para o seu envolvimento, directo ou indirecto, nos casos "Face Oculta original" e "Taguspark/Figo", casos que seguem, normalmente, e como é desejável o seu trâmite normal na justiça tendo no primeiro sido constituídos diversos arguidos e existindo ao que parece um inquérito em curso relativamente ao segundo.

Parece-me, mesmo, numa altura em que tanto se critica a justiça que o caso "Face Oculta original" constitui, conjuntamente com outros, demonstra uma maior atenção e capacidade de acção dos responsáveis pela investigação criminal na área da chamada criminalidade económica. Relativamente a esta situação, nada existe portanto a apontar (salvo a sempre eterna questão do segredo de justiça).

Onde as coisas são claramente mais complicadas é no caso "PT/TVI", relativamente ao qual julgo que é igualmente absolutamente indispensável separar os planos judicial e político.

No plano judicial, houve um procurador e um juiz que consideraram existir indícios de um crime de atentado contra o Estado de direito, crime que aparentemente ninguém sabe muito bem o que é, que curiosamente - pelo menos para mim - não está previsto no Código Penal, onde se prevêm outros crimes contra a realização do Estado de direito como a "Alteração violenta do Estado de direito" (art. 325.º) e o "Incitamento à guerra civil ou à alteração violenta do Estado de direito" (art. 326.º) - mas numa Lei avulsa (Lei n.º 34/87) relativa aos "crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções" (art. 1.º) cujo artigo 9.º dispõe que "O titular de cargo político que, com flagrante desvio ou abuso das suas funções ou com grave violação dos inerentes deveres, ainda que por meio não violento nem de ameaça de violência, tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República, na Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, será punido com prisão de dois a oito anos, ou de um a quatro anos, se o efeito não tiver seguido". Relativamente a isto, passando ao lado da questão dos aparentemente insolúveis problemas que derivam da fraca qualidade de produção legislativa que leva a que todos inclusive o próprio Procurador-Geral e o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça tenham dificuldades em interpretar a lei e a que, aparentemente, por cada dois juristas tenhamos pelo menos 3 ou 4 possibilidades, como o caso envolvia escutas em que intervinha o primeiro-ministro a validade destas foi objecto de apreciação pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que as invalidou, considerando - se bem percebi - ao mesmo tempo que não tinham relevância criminal, e no exercício das suas competências o Procurador-Geral da República considerou que não existiam sequer indicios para a abertura de um inquérito judicial através de um despacho que iria divulgar, depois concluiu que afinal não era possível divulgar e agora surgiu, parcialmente, miraculosamente em algumas redacções.

Se me é permitida uma opinião pessoal relativamente a esta componente judicial com base na informação, fragmentária, que fui lendo. Parece-me que o Presidente do STJ decidiu bem, mas já a acção do Procurador-Geral suscita-me muitas perplexidades. Para além da questão jurídica relativamente à aplicabilidade (ou não) da norma citada no caso concreto, a estratégia comunicacional foi, no mínimo, desastrosa. Fiquei com a sensação (eventualmente injusta) de que o Procurador-Geral da República quis resolver a situação ficando bem com "Deus e o Diabo" e preocupando-se excessivamente com o facto de se tratar obviamente de uma questão politicamente melindrosa. Só assim consigo entender que numa mesma entrevista diga que "eventuais propostas, sugestões, conversações sobre negociações que, hipoteticamente, tenham existido no caso em apreciação, não têm idoneidade para subverter o Estado de Direito", admitindo que possam ter existindo e simultaneamente que  o caso é "neste momento meramente político. Pretende-se conseguir determinados fins políticos utilizando para tal processos judiciários e as instituições competentes. É velho o esquema. Como facilmente se constata na Procuradoria-Geral da República, poucos políticos relevantes «escaparam» a esta armadilha política", caindo ele próprio na armadilha de dar argumentos às duas partes em confronto e comprometendo a imagem de isenção da PGR. Teria, na minha opinião, feito muito melhor em, seguindo o exemplo do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça relativamente ao qual passou a imagem de ter tentado passar uma responsabilidade que era sua, resguardar-se na questão jurídica de que "O crime de atentado ao Estado de Direito não foi certamente previsto para casos como este", solução que sendo eventualmente juridicamente discutível, até porque não esclarece a dúvida de saber para que casos foi previsto aquele crime, me parece perfeitamente aceitável e até razoável.

Entretanto, no plano político, nada está esclarecido e a confusão está instalada, dividindo-se as posições entre os que defendem fanaticamente a posição de Sócrates de que tudo não passa de uma "cabala" e os que defendem de forma igualmente ardente que existiu uma "conspiração maquiavélica" para acabar com a liberdade de expressão e o Estado de direito.

Nenhuma destas teses tem obviamente quaisquer hipóteses de ser demonstrada.

E se os defensores de Sócrates são aparentemente incapazes de compreender que os indicios no caso PT/TVI são de tal modo fortes que a estratégia de negar (aqui esplendidamente parodiada) não tem qualquer hipóteses de funcionar e apenas contribuirá para a descredibilização do Governo, os seus opositores estão a (e vão) perder-se em audições intermináveis na Comissão de Ética que, além de demonstrar a já proverbial promiscuidade entre política e jornalismo, vai constituir para eles sempre uma decepção (e um alívio para o PS/Governo) porque tudo o que for dito, e tem sido ditas coisas que merecem reflexão e preocupação, vai saber a pouco face à enormidade da tese absurda que defendem.

Analisando fria e desapaixonadamente a situação, penso que Sócrates poderia ter-se saído de forma relativamente airosa caso se tivesse demarcado claramente dos comportamentos absolutamente inaceitáveis de algumas pessoas próximas e explicar aqueles aspectos em que o seu nome surge directamente envolvido ou até obter o "perdão" do País relativamente a algum comportamento ou atitude menos correcto.

Não o tendo feito, a única esperança de clarificação que (me) resta será uma Comissão parlamentar de inquérito que, em todo o caso, julgo que seria sempre absolutamente indispensável para um esclarecimento cabal de todo o processo que veio a terminar com a aquisição pela Ongoing da participação do grupo Prisa na Media Capital e o cancelamento do Jornal de Sexta da TVI.

1 comentário:

  1. Caro JP Santos,
    Há um elemento comum aos três casos enunciados: Face Oculta, PT/TVI e Luís.
    Esse elemento comum é a existência de uma casta que parasita impunemente a democracia portuguesa e desbarata a descontroladamente o património público.

    O que está em causa é muito mais do que o negócio das sucatas, a tentativa de controlar certos meios de comunicação ou o financiamento ilícito de partidos. O que as escutas divulgadas recentemente põem a nu é a completa subversão do regime democrático.
    Mostram que os formalismos democráticos que nós cumprimos de vez em quando, nas eleições, são meramente decorativos. O governo que temos não passa de uma repartição onde a generalidade dos ministros se ocupa de meras tarefas administrativas e de gestão.
    A política e as alavancas económicas essas são manobradas na sombra por figuras em que ninguém votou e que, em muitos casos, ninguém conhece. São os assessores milionários, os gestores públicos por nomeação e os gestores privados por indicação governamental integrados numa teia incompreensível cujo comando se desconhece.
    Eles é que determinam as influências mediáticas e os empréstimos bancários, os subsídios estatais e a aprovação das concessões, eles são as "golden shares" com que opera o verdadeiro poder.
    Basta ler o curriculo dos Varas, dos Pedro Soares, dos Soares Carneiro e das Ongoings, para falar apenas os que se tornaram famosos nos últimos dias, para perceber em que tipo de "estado de direito" é que vivemos.

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